Quaresma
(Bruno Valadão)
1. Origem da Palavra
"Quaresma" provém do latim "Quadragesima" e
significa "quarenta dias" ou, talvez mais apropriadamente, o
"quadragésimo dia". Outras línguas de origem latina expressam essa
idéia, como "Carême" em francês, "Quaresima" em italiano, e
"Cuaresma" em espanhol. O termo latino, por sua vez, é a tradução do
termo grego "Tessarakoste" (=quadragésimo), com certa ligação ao
termo "Pentekoste" (Pentecostes = quinquagésimo), cuja celebração se
dá no 50º dia após a Páscoa. Já os países anglo-saxões, usam o termo
"Lent", de origem teutônica.
2. Conceito de Quaresma
A Quaresma é o período de preparação para a Páscoa do Senhor, cuja
duração é de 40 dias. Tal período, portanto, inicia-se na Quarta-Feira de
Cinzas e se estende até o Domingo de Ramos, uma semana antes da Páscoa. O
período é, assim, marcado pela penitência, pela realização constante de jejuns,
pela conversão e pela preparação dos catecúmenos para o batismo.
No início da Quaresma, na Quarta-Feira de Cinzas, os fiéis têm suas
frontes marcadas com cinzas, como os primitivos penitentes públicos, excluídos
temporariamente da assembléia (lembrando Adão expulso do Paraíso, de onde vem a
fórmula litúrgica: "Lembra-te de que és pó..."). Nos dias que se
seguem, redescobrem o significado do batismo e se esforçam para tomar a cruz e
seguir fielmente a Cristo. Aprofundam, então, o ódio que sentem pelo pecado e
são ajudados em seus esforços pelas orações em comum.
Esse tempo de penitência é bem recordado pela liturgia: as vestes e os
paramentos usados são da cor roxa (no quarto domingo da Quaresma, pode-se usar
o rosa, representando a alegria pela proximidade do término da tristeza, pela
Páscoa); o Hino de Louvor não é recitado; a aclamação do "Aleluia"
também não é feita; não se enfeitam os templos com flores; o uso de
instrumentos musicais torna-se moderado, apenas sustentando o canto, etc.
Portanto, o tempo da Quaresma é um momento forte para a prática
penitencial da Igreja, "particularmente apropriados aos exercícios
espirituais, às liturgias penitenciais, às peregrinações em sinal de
penitência, às privações voluntárias como o jejum e a esmola, a partilha
fraterna (obras de caridade e missionárias)" (Catec.Igr.Cat. nº 1438). O
mesmo pode-se aplicar a todas sextas-feiras do ano, tidas como dias
penitenciais, cf. cân. 1250 do Código de Direito Canônico.
3. Origem do Costume
Ainda que alguns Padres da Igreja, como São Jerônimo (+420), Sócrates
historiador(+433) e São Leão Magno (+461) creditem aos Apóstolos a instituição
dos quarenta dias de jejum antes da Páscoa, o fato é que o jejum pré-pascal era
observado somente em alguns dias, pois nenhum Padre do período pré-Nicéia (325)
parece ter conhecimento de tal tradição. Em outras palavras, ainda que o jejum
pré-pascal fosse praticado desde os primórdios do Cristianismo, o que denota a
existência de uma tradição apostólica sobre o assunto, não existe segurança
para afirmar que tal jejum durasse realmente quarenta dias, como dá a entender
a quaresma. Prova disso temos em Tertuliano que, ao trocar o Catolicismo pela
heresia Montanista, passou a achar deficitário o jejum dos católicos, uma vez
que os montanistas jejuavam por 15 dias (de Jejunio II e XIV; de Orat. XVIII);
também Santo Ireneu, em uma carta dirigida ao papa São Vítor, sobre a controvérsia
da data da Páscoa, diz que "alguns acham que devem jejuar por um dia,
outros por dois dias, outros por vários dias, e ainda há outros que calculam 40
horas do dia e da noite para realizarem o jejum"; a Didascália dos
Apóstolos (250) e S. Dionísio de Alexandria também mencionam o jejum pascal de
forma difusa. Parece que a primeira menção à Quaresma, como período de jejum de
40 dias, pode ser encontrada nas Cartas Festais de Santo Atanásio (331) e
depois, em 339, da pena do mesmo santo, ao se dirigir à comunidade de
Alexandria, pedindo para que esta observe o costume dos 40 dias conforme
praticado pela Igreja de Roma e grande parte da Europa.
4. Os Quarenta Dias
Indubitavelmente, o período de tentação de Cristo no deserto, bem como
os exemplos de Noé (40 dias na Arca), Moisés (40 anos vagando no deserto) e
Elias, exerceram grande influência na determinação do tempo de duração da
Quaresma. É ainda possível que o fato de Cristo ter permanecido por volta de 40
horas no sepulcro, tenha também sido levado em conta...
O historiador Sócrates nos informa, no séc. V, que a Quaresma durava
seis semanas em Roma, mas apenas três destas semanas eram dedicadas ao jejum: a
primeira, a quarta e a sexta. Tendo, porém, o número de 40 dias se estabelecido
solidamente, outra alteração acabou por se introduzir: deixou-se de se fazer
alguns jejuns durante o período de 40 dias e passou-se a jejuar durante todo o
período de 40 dias...
Em Peregrinação de Etéria, fala-se de um jejum de oito semanas
praticado pela comunidade de Jerusalém, excluídos os sábados e domingos; temos,
assim, oito semanas de cinco dias, o que totaliza os 40 dias de jejum.
Já no tempo de São Gregório Magno (590-604), Roma observa seis semanas
de seis dias, totalizando 36 dias, a décima parte de um ano completo (365
dias). Contudo, algum tempo depois, o desejo de manter-se os 40 dias fez com
que se esticasse o período até a Quarta-Feira de Cinzas, como ainda hoje é
praticado.
5. Natureza do Jejum
Também não são poucas as posições sobre este tema. Sócrates, ao se
referir em sua História Eclesiástica (V,22) sobre a prática do séc. V, nos
informa que "alguns se abstêm de todo tipo de criatura que tenha vida,
outros comem somente peixe. Alguns comem pássaros e peixes [...]; outros se
abstêm dos frutos de casca dura e de ovos. Alguns comem somente pão; outros nem
isso. Há também os que se fartam de comida após a hora nona".
Epifânio, Paládio e o autor de "Vida de São Melânio o Jovem"
eram mais rigorosos, defendendo um jejum completo de 24 horas ou mais, especialmente
durante a Semana Santa.
Entretanto, São Gregório, escrevendo para Santo Agostinho da
Inglaterra, dita a regra: "nós nos abstemos da carne fresca e de todas as
coisas que vêm da carne fresca, como o leite, o queijo e os ovos". Foi
essa decisão que mais tarde passou a figurar no "Corpus Iuris",
tornando-se a regra comum da Igreja, ainda que algumas exceções e dispensas,
especialmente quanto aos laticínios, fossem permitidas.
Quanto ao relaxamento dos jejuns, vemos que já desde os tempos do
historiador Sócrates (séc. V) havia cristãos que praticavam o jejum até a hora
nona, isto é, até às três horas da tarde; já por volta do ano 800, passou-se a
praticar até às duas horas da tarde. As regras atuais da Igreja para o jejum,
bem como para a Quaresma podem ser encontradas nos cânones 1249 à 1253 do
Código de Direito Canônico, conforme transcrito abaixo:
"Cân.1249 - Todos os fiéis, cada qual a seu modo, estão
obrigados por lei divina a fazer penitência; mas, para que todos sejam unidos
mediante certa observância comum da penitência, são prescritos dias
penitenciais, em que os fiéis se dediquem de modo especial à oração, façam
obras de piedade e caridade, renunciem a si mesmos, cumprindo ainda mais
fielmente as próprias obrigações e observando principalmente o jejum e a
abstinência, de acordo com os cânones seguintes.
Cân.1250 - Os dias e
tempos penitenciais, em toda a Igreja, são todas as sextas-feiras do ano e o
tempo da Quaresma.
Cân.1251 -
Observe-se a abstinência de carne ou de outro alimento, segundo as prescrições
da Conferência dos Bispos, em todas as sextas-feiras do ano, a não ser que
coincidam com algum dia enumerado entre as solenidades; observem-se a
abstinência e o jejum na Quarta-Feira de Cinzas e na Sexta-Feira da Paixão e
Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Cân.1252 - Estão
obrigados à lei da abstinência aqueles que tiverem completado catorze anos de
idade; estão obrigados à lei do jejum todos os maiores de idade até os sessenta
anos começados. Todavia, os pastores de almas e os pais cuidem que sejam
formados para o genuíno sentido da penitência também os que não estão obrigados
à lei do jejum e da abstinência, em razão da pouca idade.
Cân. 1253 - A
Conferência dos Bispos pode determinar mais exatamente a observância do jejum e
da abstinência, como também substituí-los total ou parcialmente, por outras
formas de penitência, principalmente por obras de caridade e exercícios de
piedade".
Isto colocado, observamos, segundo a Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil, o seguinte:
-- A abstinência começa aos catorze anos e vai até o final da vida.
-- jejum se inicia aos dezoito anos e vai até os cinquenta e nove anos
completos.
-- Tradicionalmente, o jejum consiste em não se tomar mais que uma
refeição completa ao dia ou, então, em ingerir alguma quantidade de alimento
até duas vezes ao dia.
-- A CNBB determinou que, exceto na Sexta-Feira Santa, todas as outras
sextas-feiras, inclusive as da Quaresma, têm sua abstinência convertida em
"outras formas de penitência, principalmente em obras de caridade e
exercícios de piedade".
Para finalizar, existem documentos do Magistério que abordam o assunto,
principalmente quanto a abstinência e o jejum, tão ligados à Quaresma, de uma
forma mais exaustiva. São eles:
Constituição Apostólica "Paenitemini", de Paulo VI;
Exortação Apostólica "Reconciliatio et Paenitentia", de João
Paulo II.