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EUCARISTIA E BIOÉTICA

Pe. Gilberto Kasper* 

            A Bioética e a Eucaristia se abraçam na medida em que a Ética da vida promove o aspecto “sagrado” e uma maior “qualidade”  de vida à pessoa humana, em sua mais plena dignidade. Configurar a corporeidade humana  com o corpo eucarístico de Cristo deverá ser uma das metas do 15º Congresso Eucarístico Nacional, a ser sediado pela querida Arquidiocese de Florianópolis de 18 a 21 de Maio de 2006. Jesus Sacramentado! Vinde e vede! Está no meio de nós!"

            O homem é o agente de seus atos e, enquanto são atos da pessoa, são atos de liberdade. Na perspectiva cristã, em sua liberdade e autonomia, o homem se defronta com o desígnio de Deus que lhe abre o sentido da existência e da ação. É à luz desse desígnio que o homem de hoje, vivendo num mundo auto-suficiente, pode compreender o sentido de sua existência, o sentido da história e o sentido de seus próprios atos humanos.

            Platão admitia a alma como fonte de toda moção. Derivando de Deus, a alma não estaria sujeita à perecer. O corpo, nesse caso, era apenas a prisão da alma. Assim, corpo e alma se antagonizavam e a alma possuía a primazia.

            Para Aristóteles todo ser vivente é uma síntese de matéria e forma, de corpo e alma, de Ato e Potência. A psiqué não é independente do corpo, mas seu princípio dinâmico (vida sensitiva). Ele fala ainda de NOûS que é o princípio da vida intelectiva. O NOûS subsiste sem o corpo, por isso é imortal. Em todo caso, o homem é uma unidade de corpo, psiqué (alma) e NOûS (espírito).

            No Antigo Testamento da Sagrada Escritura o homem é considerado como uma totalidade e inteireza. BA^SAR designa carne e corpo. Designa ainda parentesco e família, portanto, solidariedade na mesma carne ou do mesmo Povo: “Nossa carne é nosso irmão” (Gn 37, 27), ou nosso próximo (Is 58, 7). “Toda carne” é toda a humanidade como criatura diante de Deus (Gn 6, 12; Is 40, 5; Jr 25, 31). NEFE^S significa respiração, sopro vital. Significa a vida ligada a um corpo, isto é, o próprio vivente. Nefe^s significa “vida humana” ou a “sede da personalidade”. RUAH significa respiração, vento, espírito e mente. Exprime a relação dinâmica entre o homem e Deus. É Deus que sopra e dá vida ao homem. 

            Nossa intenção é reler a importância do resgate da dignidade da família nos primeiros anos do Terceiro Milênio. Daí buscamos uma reflexão profunda da Corporeidade e Família, desde conceitos e concepções atribuídos à Pessoa Humana ao longo da descoberta de sua existência, iluminados pelo corpo místico de Cristo.

            Apesar das influências gregas nos escritos neotestamentários a antropologia do Novo Testamento da Sagrada Escritura não é dualista. São Paulo fala de SOMA, SARX, PSIQUÉ, PNEUMA. SOMA é o corpo, indica o homem. O “EU” da pessoa. “Eu sou o meu corpo”. Realizo a minha existência no meu corpo e nas minhas obras. Em São Paulo significa também a unidade da Igreja como Corpo de Cristo (1 Cor 12, 27; Rm 12, 5). 

            SARX que significa carne é a esfera do visível, do passageiro, do natural terreno no qual o homem se move. “Viver segundo a carne” (Rm 7, 5) é viver segundo a ordem natural (ordem do instinto) e não segundo o Evangelho. 

            PSIQUÉ traduz nefe^s e demostra que a vida humana não existe sem um corpo físico. Psiqué (homem animal) se opõe a Pneuma (homem espiritual).

            PNEUMA é igual à espírito. Significa o homem novo, espiritual, destinado a um fim sobrenatural. Sarx significa o homem todo como “carne”, fechado no pecado,  “homem sem Cristo” enquanto que Pneuma significa o homem todo como espírito, aberto à vida divina, “homem com Cristo”. 

            Assim, para São Paulo, e para todo o Novo Testamento, há uma antropologia unitária. O homem, no entanto, é visto como remido (pneuma) ou perdido (sarx).

            Tudo o que é real no homem tem um caráter de corporeidade. O espírito encontra a complementação de sua espiritualidade justamente em sua união com o corpo. Uma maior espiritualização significa, portanto, uma maior humanização.

            “Todo ato humano, seja ele o mais sublime de suas aspirações religiosas ou mais elevado de seus pensamentos especulativos é, como realização que aperfeiçoa a sua natureza, uma corporificação de seu espírito e uma espiritualização de seu corpo” ( J.B. Metz apud K. Rahner,  O homem como união de corpo e alma, in Mysterium Salutis, II/3, p. 61). 

            Não existem dois caminhos, um espiritual que leva para Deus e outro corpóreo que leva para o mundo. É na corporeidade que Cristo nos salvou e é na totalidade do seu ser que o homem deve responder ao Deus Salvador. Cristo mesmo se tornou corpo (soma) para ser solidário com os homens.

A materialidade da corporeidade humana é expressão da criaturalidade e da potencialidade do existir humano. Não é uma deficiência do ser (como queria Platão) mas uma abertura para a história. A experiência da sua corporeidade e mundaneidade faz compreender que o homem e o mundo não são absolutos, ambos estão abertos ao transcendente de Deus.

            O homem é pessoa. O corpo não é o limite do homem. O homem é solidário na mesma carne (Eis a carne da minha carne, o osso dos meus ossos conforme o Livro de Gênesis). Ele é pessoa.

            A pessoa é um ser em relação com o outro e com Deus. Criado à imagem de Deus, o homem se “personaliza” na busca de maior dignidade, de justiça, de igualdade de direitos para todos, de maior humanização. Se personaliza mais quem se torna mais “imagem e semelhança” de Deus. 

            Ser pessoa, na perspectiva cristã, é ser “parceiro” na Nova Aliança e fazer parte do corpo de Cristo e, portanto, poder agir “in soma Christi”, isto é, agir como membro do corpo de Cristo.           

            São duas as características principais da pessoa: Alteridade pelo reconhecimento do outro como igual e Liberdade como capacidade de decidir.

            A pessoa humana tem consciência do valor da liberdade e do pecado da escravidão. A liberdade é da essência do ser humano, da natureza mais íntima. É um dom do criador restabelecido pelo redutor. Podemos dizer que o homem é “pessoa” enquanto um ser concreto que se relaciona com o outro (alteridade) e o faz consciente e livremente (liberdade). 

            A pessoa se distingue de outro ser porque a sua existência não está marcada por um rigoroso e completo determinismo, ao contrário, encontra-se numa abertura ao outro e ao transcendente. Ele tem diante de si diferentes possibilidades históricas que livremente escolhe. Em cada escolha livre ele tem a possibilidade de se humanizar cada vez mais. Assim, a liberdade humana é uma tarefa a ser construída.

            O homem-pessoa é sua consciência. Está presente no Antigo Testamento da Sagrada Escritura a consciência com a noção coração, fonte de vida moral, sede onde se interioriza a Lei Divina e onde os atos humanos são julgados. No Novo Testamento o conceito de consciência aparece trinta vezes como Juízo religioso moral, testemunho insubornável (Rm 2, 15; Rm 9, 1; 2 Cor 1, 13) e instância última da decisão moral (1 Cor 8, 10; Rm 14).

            Deus fala à consciência humana. A pessoa humana é a sua consciência. A consciência se situa na dimensão subjetiva da moralidade. O Concílio Vaticano II afirmou que a “consciência é o núcleo secretíssimo e sacrário da pessoa humana onde ela se encontra só com Deus e onde ressoa a sua voz” (GS 16). É, portanto, a profundidade insubornável da pessoa (o mais íntimo de toda intimidade). 

            É pala consciência que o homem pode conhecer a existência, os limites e as possibilidade da realidade da qual faz parte. O Concílio lembrava que a consciência é profundamente solidária, pois “na fidelidade à consciência, os cristãos se unem a outros homens para buscar a verdade e para resolver, segundo essa mesma verdade, tantos problemas morais que surgem tanto na vida de cada indivíduo como na vida social. 

            Segundo Erich Fromm “Não existe afirmação mais soberba que o homem possa fazer do que dizer: agirei de acordo com a minha consciência. Sem a consciência, a raça humana teria ficado estancada há mais tempo em sua funesta carreira”. (Ética Y Psicanálise, 1969). 

            A sexualidade é um dos elementos mais atingidos pela revolução cultural dos últimos tempos. De uma situação tabuística onde a sexualidade era reprimida de um modo irracional, passou-se a uma outra de extremo erotismo igualmente obsessiva e racional. 

            Entendemos que a sexualidade não é uma realidade que interessa somente ao corpo, mas interessa ao homem como um todo, na profundidade do seu ser. Saibamos sublimá-la para melhor configurarmo-nos com o Corpo Eucarístico de Cristo.

*Mestre em Teologia Moral e
Professor de Bioética no ITESC